06 maio 2022

Dia do Azulejo

 
Quinta de Cima, Oeiras
 
 
História do Chapeleiro, no Museu do Azulejo.
Talvez a primeira história do tipo banda desenhada (em azulejo) no país. António Joaquim Carneiro é o exemplo da ascensão social. Chegou a chapeleiro da Casa Real e foi "compadre" do meu 5º avô
 
 
 Mapa de Lisboa, no museu do Azulejo
 
 
Entrada da Fábrica da Pólvora, Barcarena
 
 
Museu da Cidade, Lisboa
 
 
 
Jardins do Palácio do Marquês de Pombal, Oeiras
 

 

 





 

25 abril 2022

25 de Abril sempre


 Agora que já floriu
A esperança na nossa terra
As portas que Abril abriu
Nunca mais ninguém as cerra (...)

(José Carlos Ary dos Santos)

22 abril 2022

O prospector

 


A 22 de Abril de 1920 nascia o meu tio Alberto. O primeiro de oito filhos de um casal que acabou por ficar apenas com este filho e três filhas, tendo perdido os restantes logo nos primeiros meses de vida.
O meu tio nasceu em Lisboa, mas foi vivendo aqui e ali, consoante o trabalho do meu avô, para a Junta Autónoma de Estradas, exigia. Moraram em Coimbra, no Porto, em Mértola e por fim em Silves, onde concluiu a instrução secundária. 
Tal como o pai, também Alberto se empregou na JAE.
Casou com Maria Isabel Tenente aos 24 anos, em Ponte de Sor, onde o casal ficou a residir. Por pouco tempo.
Os dias eram rotineiros, o trabalho pouco exigente e a sua ânsia de fazer mais e de ser melhor fizeram-no aspirar a outros desafios. Candidatou-se à Diamang e, em Fevereiro de 1948 embarcou no Quanza, rumo a Angola.
Pelas centenas de cartas que o seu pai guardou, senti que o conheci quase melhor que as irmãs, mais novas uns anos valentes. Soube como a estranheza inicial deu lugar a um entusiasmo crescente. Rapidamente o trabalho na Contabilidade era História e o meu tio passara a ser “homem do mato”, começando a trabalhar na prospecção.
Vivia em casas de pau a pique, algumas com diversos quartos e com frigorífico, em pleno mato, em 1951.
Liderava o trabalho de equipas de nativos, caçava (sobretudo para alimentar os seus homens) e fazia o levantamento de zonas vastíssimas, onde por vezes nenhum branco havia sido visto.
No Dundo aprendeu a guiar, embora o seu dia-a-dia consistisse em caminhar dezenas de quilómetros e prospectar. Adquiriu noções de primeiros socorros, tratou e foi tratado. Injecções de quinino e todo o material de assistência básica acompanhavam aqueles homens por todos os pontos onde assentavam por uns tempos.
O casamento não deu certo e Alberto acabou por se sentir ali tão bem quanto os leões ou os macacos. Convivia por vezes com outros prospectores e com os elementos da equipa de Geologia e só esporadicamente com outros empregados e suas famílias, nos “lupangos” mais próximos de onde se encontrava.
Descobriu o maior kimberlito da história até então, o que ficou documentado em publicações internacionais da especialidade. Mas também se apercebeu de alguns desvios, o que talvez tenha estado na origem dos ocasionais desaparafusamentos de porcas dos pneus do Land Rover que conduzia.
Passou a viver com um mini zoo, onde havia sempre espaço para mais algum animal, enquanto algum acabava por morrer. Se, na metrópole, já gostava de filatelia, no Dundo apaixonou-se pela fotografia e vídeo. Encomendava câmaras, rolos e filmes do estrangeiro.
Colaborando frequentemente com o laboratório de Biologia da companhia, acabou por se dedicar também ao embalsamamento. Encomendava câmaras, rolos e filmes do estrangeiro.
Nas férias, vinha ao “Puto”, rever a família e fazer tratamentos na termas, indo também a Espanha e Marrocos.Morreu subitamente, sem descendência conhecida, naquele que planeava ser o último contrato, quando o Land Rover onde seguia entre Xá-Mutemba e Iogo capotou, poucos dias após completar 44 anos.
Deixou desolado o pai, já viúvo, e as irmãs, todos órfãos de um corpo a quem fazer as exéquias.
Foi o meu tio quase mítico. E hoje, quis lembrá-lo, mesmo sem ter chegado a conhecê-lo pessoalmente.

17 abril 2022

Parabéns, Pai!


Hoje seria dia de festa: o aniversário do meu pai e o de casamento dos meus pais.
Se ainda estivesse nesta dimensão, o meu pai completaria hoje 85 anos.
Não está, mas estão os dois filhos, os dez netos, dezoito bisnetos e três trinetos; fica bem representado, em número de descendentes.
Foi um Homem com H maiúsculo, um exemplo de sageza.
Íntegro como poucos ousam ser (perdeu a oportunidade duma vida por não esconder a sua ideologia política), não teve quem lhe amaciasse o caminho. Cedo teve de deixar a escola e começar a trabalhar, consertando guarda-chuvas.
Colmatou a falta de estudos com um forte temperamento auto-didacta. Leu muito, aprendeu sobre diversas áreas e ainda não era adulto quando começou a escrever críticas para os jornais. Nunca parou de ter um papel activo na sociedade e foi isso que me transmitiu.
Ensinou-me aos doze anos a bater-me por justiça. Sozinha. E foi com os meus meios que passei a enfrentar tudo.
Incentivou-me a ser a melhor (não posso dizer que o tenha conseguido, mas ficou a lição). A não desistir. A batalhar pelas minhas convicções e a questionar tudo quanto me quisessem fazer crer. Orientou-me. Deu-me conselhos, a maioria dos quais não pedi. Mas segui-os.
Sonhava viver numa biblioteca. O máximo que conseguiu foi reunir tantos livros em casa que a minha mãe receava que o escritório caísse sobre o vizinho. Resolvia todas as palavras cruzadas do jornal. Mesmo as que traziam as quadrículas pretas por preencher.
Deixou-me, com o seu exemplo, o gosto pelo saber, a liberdade, a tolerância, a perseverança.
O meu pai foi o meu primeiro orgulho. Um herói com pés de Barros.
Tanto do que sou provém dele.
A doença de Alzheimer atacou-o precocemente e foi pouco o tempo que tivemos. É sempre pouco, quando se ama.
Mas valeu tanto!
Abraço-te, pai. Nesse plano da utopia, onde agora estás.
E segredo-te “parabéns, pai!” por tudo o que a tua vida significou para mim, pelo exemplo que foste.

(imagem retirada na Net)

09 abril 2022

Dia do Combatente






9 de Abril

Batalha de La Lys

Fotos da cripta e do talhão dos combatentes, no Cemitério do Alto de S. João, em Lisboa

30 março 2022

Deolinda

 

Fez ontem sessenta anos que Deolinda morreu.
Cresceu na Sobreira, perto do Porto, numa família numerosa, onde apenas a última filha, adoptada, foi à escola. Os restantes dez foram ajuda nos trabalhos de campo e domésticos dos pais.
Não sei muito sobre a sua vida. Sei que aos 23 anos, quando casou, trabalhava como ama dum menino num palacete na Foz, no Porto. O casamento, bichanaram-me recentemente, parece ter sido arranjado pelos patrões. Deolinda casou com outro empregado da família e tiveram um filho, que os patrões apadrinharam, e uma filha, com menos de dois anos de diferença.
Quando estes eram crianças, o peso da autoridade do marido fez-se sentir. Mas ela não era mulher para se encolher. Injustiçada e indignada, pegou nas crianças e saiu. Num tempo em que as mulheres não deixavam os homens, ela saiu. Sem apelo.
Tentou que a zanga do pai dos filhos, despeitado, não se reflectisse sobre estes, mas sem sucesso. As vidas continuaram a decorrer nas proximidades uns dos outros, porém o pai não falaria mais a nenhum dos três.
Como padeira, Deolinda mudou de vida. Moravam numa ilha e distribuía pão às portas das freguesas. Não sabia ler, o que lhe causava desgosto. Mas nas contas ninguém conseguiria enganá-la.
Por vezes levava consigo a filha e a menina recebia guloseimas, que fazia questão de partilhar com o mano.
Era uma mulher de fé. Criou os filhos no cumprimento dos sacramentos. Quando chegou o momento de fazerem a primeira comunhão, a mãe ofereceu um fio a cada um, com um anjo da guarda.
As crianças cresceram ouvindo-a cantarolar as canções da fadista preferida, Amália.
Dos seis netos que viria a ter, só conheceu o primeiro, meu irmão, que ajudou a criar.
Um dia, a doença rasteirou-a. Era ainda nova.
O menino de quem fora ama, então já médico, foi uma das visitas que recebeu no Hospital de Santo António, onde já nada pôde ser feito.
Faleceu com 49 anos. Ontem, que foi o 60º aniversário da sua morte, lembrei-me de partilhar o que sei desta minha avó, a paterna.

27 março 2022

Eu sou a minha própria mulher

 

 


São duas horas de monólogo de Marco Almeida, que demonstra uma versatilidade a toda a prova.
Dá corpo e vozes a 35 personagens, nesta “celebração da liberdade e da identidade, do respeito por cada um e a luta por direitos iguais” com que o Teatro experimental de cascais resume a peça.
Duas horas sem intervalo, entre a pele de uma Charlotte von Mahsdorf e 34 outras. Num segundo encarna os gestos pausados e a voz de inflecções súbitas e trejeitos femininos e no instante seguinte irrompe num vozeirão tonitroante que se destaca entre uma cenografia toda ela espantosa.
São tons que vão do masculino corrente ao feminino exibicionista duma pivot, do gutural quase exclusivo dos filmes de animação ao queixume rastejante dum velho que sofre.
Com esta Charlotte andamos de montanha russa, entre o riso e a apreensão, o escárnio e a surpresa, onde nenhum pormenor desta encenação de Carlos Avilez é menor que perfeito.
Com esta Charlotte, vamos, pela mão duma idosa amante de antiguidades, conhecer a história do museu Gründerzeit e explorar os acontecimentos do século XX, numa Berlim fustigada pela guerra e passada a pente fino pelos nazis e depois pelos comunistas. Uma Berlim não acolhedora para que não se encaixava nos padrões “normais”.
Se, com o enredo, somos levados a encontrar semelhanças com a actualidade, a música fez-me viajar entre recordações, quer de viagens, quer de quando, aluna do secundário tive o gosto de na mesma sala assistir, com a minha família, a outros momentos dramáticos.
Passaram quase 24 horas e continuo a pensar: como é possível? Uma recordação que ficará, pelo desempenho brilhante de Marco Almeida. Por tudo.

21 setembro 2018

Dia Mundial da Doença de Alzheimer

Há pouco tempo passou no cinema um filme com a Julianne Moore que muitos acharam impressionante. Chamava-se O Meu Nome é Alice e conduzia-nos a um patamar moderado de perda de identidade e autonomia da protagonista.
Fui ver o filme com a minha mãe. Ambas calámos a dor indelével da ferida retocada até ao final da exibição. Então, virámo-nos uma para a outra e concordámos que o filme (tal como o livro em que se baseia) apenas aflora a doença.
Alzheimer é sentença pior que outros males, porque significa o fim da esperança. Para o doente e para quem o ama.
Não digo que o filme seja mau, mas incompleto. Fica-se pela perda de sentido de orientação, incapacidade de prosseguir a vida profissional, deterioração dos cuidados pessoais.
Para nós, Alzheimer começou com a incapacidade para preencher as palavras cruzadas acompanhada da perda de vocabulário e a compra do jornal sem dinheiro, que acautelámos prevenindo as senhoras da papelaria.
Depressa começaram as idas constantes ao hospital, para hidratação e nutrição do meu pai que, antes dos 60 anos(!), desaprendera de comer e deixara de sentir sede. As saídas furtivas à rua, o impulso de meter a mão num tacho ao lume ou numa tomada, os comentários e comportamentos inadequados. Rapidamente evoluiu para um estado de magreza gritante e uma vulnerabilidade que troca o sentido à vida da família. O olhar vazio de quem tudo desaprende.
O doente desconfia da própria imagem reflectida no espelho e deixa de reconhecer quase toda a gente. Multiplicam-se infecções respiratórias e urinárias.
As crises de agressividade podem ser frequentes e o(s) cuidador(es) sofre(m) de exaustão, isolamento e suportam um fardo económico brutal.
Alzheimer não é como o filme com a Julianne Moore nem é doença que deva servir de base a piadas de mau gosto.
Hoje é o Dia Internacional da doença este texto é a minha forma de sensibilizar para a demência.

01 maio 2018


Fez hoje três anos que saímos de casa ansiosos, a caminho do hospital. Passara a manhã a ligar para o serviço onde a minha mãe estava internada, sem que ninguém atendesse. Até que, coincidência ou não, me atendeu precisamente uma neurologista que acabara de vê-la. O hematoma subdural ameaçava com uma hemiparesia e lá fomos nós, assinar a autorização, dar-lhe um beijo e esperar que a intervenção decorresse bem.
A espera foi sufocante. Sabia que a intervenção era minimamente invasiva, mas não deixava de sentir ansiedade. O procedimento foi bem-sucedido, a recuperação demorada, mas com sucesso também.
Hoje, a minha mãe pode ter-nos observado, a mim e à neta, a ir ao encontro da sua amiga de mais longa data. Quero imaginar que sim. Que nos viu abraçar e conversar com a sua colega de escola primária, deixar lembranças e, infelizmente, esquecermo-nos de tirar uma fotografia.
Andei anos a tentar que fosse connosco a Mértola. Queria que os netos conhecessem a sua terra natal pela sua voz. Ouvissem da boca da avó as lembranças da casa onde nasceu. Que rissem na sua companhia com as histórias e peripécias da meninice nos anos 40.
Não consegui concretizar o desejo. A minha mãe certamente já se sentia muito fraca há demasiado tempo, para conseguir alinhar em “aventuras”.
Hoje, soube a pouco o reencontro com quem não via há anos e não pôde acompanhar a despedida da minha mãe. Mantinham uma proximidade telefónica que eu tenho desempenhado, em certa medida, no lugar dela. Tal como com outras amigas.
É bom ter com quem recordar. E mais recompensador que na dispersão dum velório ou funeral. 
Foi, provavelmente, a tarde mais emocionante que podia ter vivido, hoje. 
O sonho permanece.

24 abril 2018

25 de Abril


No dia 25 de Abril de 1974 eu era um ano e tal de gente e a minha mãe assustou-se por saber o meu pai nas ruas. Sabia-se lá o resultado do que se passava!...
Cresci num ambiente de debate político aberto e de participação em comícios, desfiles e festas do Avante. O meu pai votava no PCP e ensinou-me a curiosidade, que rima com busca pela verdade. E o espírito crítico. E a tolerância. Fui criada entre foices e martelos, póster de Sérgio Guimarães no escritório, cravos vermelhos e músicas do Zeca, do Adriano, do José Mário Branco, do Fausto. Fui incentivada a fazer o meu juízo. Não encaminhada para votar igual. E isso eu considero admirável.
Lembro-me de me sentir alta às cavalitas do meu pai e julgar o Álvaro Cunhal baixo, quando lhe observei a cabeça tão alva, de cima, num qualquer comício ou festa. O meu pai não era alto; mas eu tinha uns 6 anos... e aprendia a participação cívica e a prossecução dos sonhos, a par da letra da canção do Manuel Freire, escrita pelo António Gedeão..
Os dias da Festa do Avante eram de muitos km percorridos sobre o pó, de goulash à húngara, de concertos e numerosos encontros. Sempre o “tu” no trato com os outros, fossem eles quem fossem, tivessem a idade maior ou mais curta. Ficou-me a facilidade em tutear, prorrogada por uma profissão onde, tanto tempo depois, todos o fazíamos. A democracia na humanidade.
Chegávamos a casa com terra por todos os poros e orifícios, derreados mas contentes. A banheira era quem reclamava, em lágrimas castanhas.
Cumpri o meu instinto de marchar pela liberdade na maioria dos anos. Antes e depois de perder o pai. Há poucos anos, já a minha mãe se cansava com relativa facilidade, ainda fomos as duas para a Avenida, com um cravo cada uma. Um dos muitos momentos que agora lembro com nostalgia.
Aos meus filhos, mostrei programas alusivos ao 25 de Abril. Falei-lhes do tempo presente e do passado. Fomos, com a minha mãe, aos concertos do Fernando Pereira e dos Real Companhia no Centro Olga Cadaval quando Sintra ainda marcava a data, com um presidente de câmara de outra cor política, meu ex-professor. O choro denunciava a saudade e o sono teimava em não vir quando regressava a casa. Só me ocorriam “flashes” dos momentos em que, em família, eu e os meus pais festejámos a liberdade.
Esta é uma data que me diz tanto. A data que escolhi para criar o meu blogue, "Escrito a Quente", há 11 anos. Que me recorda o sonho e me molha o olhar.
O primeiro 25 de Abril em que os meus pais estão já ambos noutro plano.

17 abril 2018

17 de Abril

17 de Abril foi, durante muitos anos, dia de festa. A dobrar.
Era o aniversário do meu pai e o data que os meus pais escolheram para casar, após uma longa união.
Era dia de casa cheia ou de família chegada. Mas sempre de comemoração.
Cartões, presentes, surpresas ou mesas compridas com muitos copos e talheres, decoradas com todo o cuidado e rodeada por numerosos convivas.
A minha mãe adorava cozinhar, fazer bolos e receber. O meu pai, mais reservado, saía do casulo quando era anfitrião e entoava saudações que terminavam em gargalhada geral.
Guardo muitas memórias doces desses tempos. Recordo o bolo em feitio de garrafa de “champagne” num “frapé”, num tempo em que ainda não se usava a pasta de açúcar na decoração de pastelaria. A minha mãe, que fora aluna da escola hoteleira, descobria sempre um modo de dar forma ao que pretendia.
Agora, não há aniversariante nem casa cheia. Nem bolo ou gargalhadas.
Existem as minhas memórias e uma sensação de nostalgia ao longo do dia.
Abril é um mês marcante. Embora tudo seja marcante nesta fase, ainda recente.
Sorrio, um sorriso triste, enquanto me lembro que eles gostariam que eu fizesse isto mesmo: lembrá-los, e aos momentos melhores que vivemos enquanto estávamos todos.

13 abril 2018


Uma casa a desfigurar-se.
Uma pessoa a desmoronar enquanto protagoniza a mudança inevitável.
Saem papeis, plásticos e lixo primeiro. 
As coisas substituíram a vida nesta casa, há muito. Cheira a naftalina e o ar incomoda. Nem as paredes têm espaço livre.
Nunca gostei de casas tão pesadas de objectos. Agora, pesam-me no coração, à medida que encaro cada um, numa solidão de filha única que desfaz a casa da família, onde cresceu, quando tanto é já absurdamente excedente, resultado dum processo menos salutar de acumulação
Pela frente, vejo uma tarefa interminável, projecto para o qual as forças têm de ser forjadas; não existem. E no calendário próximo há cirurgias à vista.
O luto é um processo conhecido, mas nenhum luto é igual.
Desmontar uma casa também não é uma estreia. Mas esta é a casa.
Cada roupa, cada fotografia, cada móvel tem ADN nosso. Mas o pior são os detalhes. As flores que a neta ofereceu no último Natal com o seu próprio dinheiro. As gravatas do meu pai que a minha mãe guardou todos estes anos. A carteira que saiu com ela para o hospital e voltou sem ela. As roupas de que ainda não consigo abrir mão. Os cartões de Dia da Mãe, as fotografias de quando éramos pai, mãe e filha sorridentes.
Há tristeza em cada gesto, horas infindáveis de gestos pela frente e tantos móveis, tanta coisa cujo futuro me aflige.
Este é um luto que eu não sei como gerir.

29 março 2018

Uma semana


Foi há uma semana. Dia 22, como o do seu nascimento.
Tenho cada instante desse dia gravado na memória, para sempre; de tão intenso, de tão triste.
Um autêntico terramoto, ficar sem pai nem mãe. E sem irmãos com quem partilhar a dor.
Ficam as lembranças. E nestes momentos pomos de parte as más. Não que as pessoas que amamos se tornem santas, mas porque o amor é selectivo e escolhe de cada um o melhor. Tal como em vida nos faz ultrapassar as dissidências, as falhas de comunicação, o que de menos perfeito possa ter havido.
Vivo dias de dor e “flashes”, mas com uma ligeira satisfação por ter feito tudo durante a doença, tal como fiz tudo quanto pude ao longo da vida. A minha mãe conhecia os meus amigos, estava connosco em cada ocasião especial, fossem datas ou simples idas ao zoo, a um concerto, um passeio…
Nos últimos tempos, era já a como se a minha filha mais nova. A quem concedi o meu tempo, o meu toque, as palavras, a companhia no conta-gotas duma quimioterapia que se sabia apenas paliativa, no quarto de hospital onde lhe molhava testa e lábios, tentando levá-la para longe das quatro paredes em conversa; enquanto pudemos conversar…
Resta o alívio por ter (tal como desejava) estado junto dela nos últimos instantes de vida. Não sei se consegui ajudá-la na travessia, mas agarro-me à ideia de que sim. As palavras que lhe disse foram as mais sentidas, antes de repousar a cabeça naquele peito esquelético, tão sofrido, à procura dum colo de mãe que já me fazia falta.

14 março 2018


E do nada, que foi quase tudo, surge um sorriso, uns braços esboçando um abraço apertado, quando os últimos dias foram de quase total inércia.
Atónita, habituada a semanas de cama recebendo as mesmas visitas, olhou a amiga que reservou viagem para vir a Portugal visitá-la assim que a soube doente. Amiga que surgiu por trás de mim e, no seu inglês afectuoso, abraçou-a e passou o tempo recordando convívios, bolos e gargalhadas.
Até eu renasci! Que isto, só quem conhece o caminho solitário da doença prolongada valoriza realmente os que sabem distinguir-se da conduta de habitual distância. Não sei que vírus este, dos humanos: agem como quem receia o contágio. Não acompanham doente ou familiar.
Num mundo onde os abraços quase se extinguem, a conversa escasseia, até os sms evaporam e é raro o amparo emocional prestado aos que sofrem.
É disto que precisamos: de corações que saibam conjugar afecto com disponibilidade, no verbo entregar(-se), presente do indicativo.

11 março 2018

São notícias que nos ensurdecem ao primeiro impacto e entontecem logo a seguir.
A solidão. O refazer o caminho para encarar quem sofre sem saber de quê. Ter de manter a máscara, como se nada se soubesse. Proteger, sorrir, acarinhar.
São fraquezas que nos entram no âmago e roubam saúde ou alegria.
São perguntas sem resposta ou comunicações brutais, sem ética que adapte a verdade ao receptor que terá de digeri-la.
São ambientes de ruído, dores de tudo e diálogos de tentar forjar esperança. E de tanto que fica por dizer.
São semanas em que mingua o tempo, o físico e o ânimo.
Lá fora, a vida segue o rumo feliz para os sem notícias.

10 janeiro 2018

Serviço Nacional de Saúde (ou "Deus nos livre!")

Doente com 80 anos, passado de neoplasia da mama, AVC, depressão, tonturas e bócio.
Cansaço crescente de há 3 anos aos dias de hoje. Desequilíbrios e tonturas resultantes em quedas, com fracturas e hematomas subdurais, internamentos e drenagem.
Médica de família não dialogante, que não pedia exames, dizendo ser tudo da idade. Doente não acedia à mudança de médica de família porque não (apesar de não confiar).
Análises, em Junho, pedidas por outro médico, particular, a quem a doente recorreu. Pico monoclonal na electroforese das proteínas, com laboratório a sugerir repetição das análises e doseamento das proteínas, nomeadamente de Bence-Jones. Após 3 meses e medicação prescrita pelo mesmo médico, levei à médica de família a sugestão de análises deste e a doente repetiu as análises, mantendo-se o pico mononclonal.
Em consulta com Neurologista, em Setembro, este sugeriu mandar a doente rapidamente à especialidade de hematologia, através da médica de família, pois, não tendo o hospital aquela especialidade, não tinha como encaminhar a doente.
A médica de família disse ter pedido com urgência tal consulta, para o HSFX e “eles lá q façam as análises".
Em Novembro, a doente, cuja marcha foi sendo cada vez mais difícil e passando um tempo progressivamente maior de cama, apresenta tosse, prostração, dores, tonturas, náuseas, vómitos escuros, dificuldade em respirar, um cansaço mais acentuado e confusão mental. Recusa, inicialmente, ir à médica, como tem recusado, nos últimos anos, psicóloga, psiquiatra e avaliação neuropsicológica.
Até que, no dia 4 de Dezembro, vai ao CS e tem a surpresa de a médica de família para quem tudo se devia “à idade” ter ido embora. Uma médica nova prescreve ibatrópio, salbutamol e acetilcisteína.
No dia 18, e persistindo a tosse, as náuseas, vómitos e prostração da doente, com dores abdominais e alguma dificuldade respiratória, volta à consulta. A médica prescreve um macrólido e pede raio x ao tórax e eco abdominal, com urgência. Estes, revelam líquido no abdómen e na pleura, quistos renais e alguns aspectos sem importância.
Os vómitos, de substância escura, persistem, a doente perde peso e cor. A confusão mental é frequente.
Na consulta de dia 26, outra médica a viu e, em resultado dos exames, pediu TAC´s abdominal e torácica e ecocardiograma.
Nestes, mantêm-se os achados dos exames anteriores, descritos em textos longos com mais uma série de referências e indício de hipertensão pulmonar.
No dia 30, a doente parece estar por um fio, após mais vómitos violentos. É levada à urgência, mas, quer pela fraqueza geral, quer pela confusão mental, recusa-se a esperar mais quando, após 4 horas de espera, nem um número amarelo foi chamado para observação.
Estranhando a consulta de urgência para hematologia não ser marcada desde Setembro, a filha da doente contacta a Unidade de Gestão de Serviço e Suporte do Ministério da Saúde, que a informa não haver qualquer consulta pedida. Tenta, então, marcar nova consulta no CS, para pedi-la, após mais de 3 meses desperdiçados na falsa ideia de que estaria.
Passa dias a tentar obter consulta, até conseguir, na passada Segunda. Saltando uma série de situações que fariam zangar qualquer um, resumo: uma terceira médica vê a doente ao fim de horas de espera. Criteriosa, atenta, demora-se, anotando tudo quanto há a ter em conta. Sente que um pico monoclonal não investigado, uma ascite e um derrame pleural, o indício de hipertensão pulmonar, os quistos renais, a debilitação crescente do estado de saúde da doente e consequente perda de peso, apesar do aumento do volume abdominal justificam uma ida directa para a urgência de hospital. “Lá, conseguem fazer todos os exames rapidamente, em vez de a mãe andar a fazer exames e perder-se tempo entre pedidos, realização, relatórios e consultas. Penso até que poderão interná-la”.
Passa uma carta ao serviço de urgência, expondo o historial completo, destacando os factos dos últimos meses e solicitando uma pesquisa.
Na urgência hospitalar, com pulseira amarela, a doente é observada por um médico com sotaque e historial negativo que, falando alto e contrariado, diz que “as coisas não são assim” e que a doente devia continuar a ir ao CS e fazer um exame aqui, outro ali, esperar os resultados e ter paciência, mesmo mal conseguindo andar, debilitando-se e sentindo dores e vómitos constantes. A doente apresenta febre, continua com TA alta, pulso acelerado e são pedidas análises e eco abdominal.
Decorridas mais de 5 horas, a filha tenta saber o porquê de não ser chamada. Continuando a doente na sala de espera, a médica que substituíra o gritante de maus modos, manda-a sentar e repete, com bons modos, que “não é assim que as coisas se fazem”. Imprime e vê os resultados da ecografia (o derrame pleural tornou-se bilateral) e das análises (plaquetas, leucócitos e Proteína C reactiva elevados), pede um minuto, sai do gabinete e regressa meia hora depois, dizendo à filha, que ali esperara sozinha, que ficava pedida consulta de Medicina Interna.
Saímos do hospital após mais de sete horas de termos chegado. Esta médica nunca viu a doente.
Desconheço qual o próximo episódio.

02 janeiro 2018

Ano Novo


“A irracionalidade ao poder”, podia ser o titulo das cenas de ano novo na TV.
Todos pulam, gritam, empurram, tentam açambarcar a imagem da câmara televisiva, numa euforia incontida e de etiologia muito subjectiva. 
Alguns bebem em excesso; talvez sem darem conta, talvez porque a intenção seja mesmo perder a noção da realidade por instantes.
Entre aproximadamente os 14 e os 25 anos, a ocasião fazia-me vibrar. Depois, passei a vivê-la como um momento sem grande importância, antecessor da subida do custo de vida. Dá-me ideia que certo tipo de maturidade, decorrente das experiências vividas, nos cinge os marcos a ocasiões muito mais conotadas com nascimentos, mortes, viagens ou doenças e outras datas marcantes destes calibres. “Antes de” e “depois de” passam a ser as nossas referências cronológicas, alheias ao calendário gregoriano.
Talvez passada a marca da juventude toda a nossa perspectiva se altere e nos faça olhar as tais cenas de euforia no réveillon como irracionais. O tempo cada dia mais voraz, o horizonte encurtando sorrateiramente fazem-nos relativizar a importância dos episódios, seleccionar companhias, programas, projectos. Tanto sonho adormecido, tanto desejo adiado, tantos dias que ditaram responsabilidades e urgências diluentes do individual ao serviço do familiar.
Queremos saborear o que temos. Valorizamos o sossego e a saúde.
Tememos perder os que amamos e as capacidades físicas e cognitivas. Recebemos notícias inesperadas, por vezes chocantes. Estabelecemos novos objectivos, tentando fintar os reveses sucessivos. 
Continuamos a aprender. Não abdicamos do sonho.

30 novembro 2017

"O Mundo ao Contrário"



(foto retirada do site da RR)


Lembro-me dos Xutos e Pontapés desde sempre.
Cantei as suas músicas desde que a adolescência aguçou o meu gosto pela música. As letras faziam eco na caixa de ressonância individual que funcionava colectivamente. Eram tempos de grupo, de saídas com colegas, de amizades que se prolongaram pela vida.
Em cada saída, em todas as festas das colectividades, nos concertos locais, nos encontros da juventude do partido, lá estávamos nós a cantarolar, vibrando alto e bom som o que nos ia por dentro. 
"A carga pronta e metida nos contentores" arrastava malta do liceu ansiosa por aventuras que comprometiam saúde e futuro àqueles que cedo optaram por viver em "alta rotação".
"Aqui ao luar, ao pé de ti, ao pé do mar", vivemos a adolescência mais prometedora, sabendo que podíamos "estoirar para sempre" se fôssemos por aqueles caminhos, mas seria sempre “à minha maneira”; esboçávamos então, aos 14/15 anos, um percurso que acreditávamos híper poderoso, ou não fôssemos inflexíveis nos nossos sonhos. Que eram grandes; tão grandes como o futuro, que ainda era uma linha infinita.
Apaixonámo-nos. "Só loucos como nós viviam o amor com tanta paixão". Crescemos, ou fizeram-nos crescer. Ficaram as saudades das "alegres casinhas".
E foi sempre assim. "Tomámos coragem para os nossos destinos". Crescemos, tornámo-nos mães e pais com “putos que crescem sem se ver, basta pô-los em frente à televisão”.
Em 2014 fui, com o meu amigo Alex, ao concerto dos 25 anos dos Xutos. Emocionante.
E agora que repousas, Zé Pedro, Portugal pergunta-te:
"Porque sais?,
Ainda é cedo,
E tu não sabes mentir."
E respondes:
"Nem eu sei,
Só sei que fica tarde
E eu tenho de ir."
E o povo pede: "não vás, ainda"". E acrescenta: 
Conta-me historias daquilo que eu não vi..."

26 novembro 2017





Existe o belo natural e o belo criado. A Natureza inspira o Homem.
A beleza faz a vida valer a pena. Gestos belos, obras de arte, águas livres, revoltas, em cursos ou lagos. A fauna, a flora e a gente que guarda beleza no interior.
Serão os mais sensíveis ao belo os mais completos? Serão mais felizes os que conseguem distinguir cada traço de beleza quase oculta?
Há dias perfeitos e dias de esquecer. Datas de comemorar e fases de digerir a fealdade do humano, dos desatinos da vida.
Sem beleza nas paredes, na rua, nas caras, todos serão dias de nada. Belo é conseguir o que nos eleva. Manter o equilíbrio, sorrir diante do que quer que seja. Belo é ser capaz. É ser livre e solidário. Belo é ajudar a ser. Não julgar, não afastar. Partilhar o melhor.

26 outubro 2017

Parabéns, Vasco!


Foi o meu sonho de sempre. E personalizou-se há 15 anos.
Neste dia, em 2002, nascia o Vasco, o meu amor primeiro.
Quando nascem, temos todos os sonhos do mundo centrados (concentrados) neles. Como se estivéssemos programados para neles projectarmos o nosso infinito quando a nossa vida conhecer um fim. E, se calhar, estamos.
Quinze anos depois, o meu filho cresceu imenso, evoluiu, mudou tanto…
Era uma tortura do sono, este bebé. Até que fomos de férias ao Porto Santo e os seus ritmos circadianos amadureceram.
Já foi muito sossegado. Até que veio a mana e o ambiente nunca mais foi o mesmo. Se não os podes vencer…
Já teve medo de água fria. Até que a tia-avó o foi levando, gradualmente, a descer cada vez mais as brincadeiras na areia.
Já teve medo até de manter a cabeça debaixo de água. Até a mãe o fazer ver que entre amigos tudo é mais divertido. Tão divertido que, agora, o surf é o seu desporto, passatempo e interesse maior.
Já gostou de livros. Até que os gadgets tomaram na sua vida o lugar que actualmente têm em quase todas as vidas. Com especial incidência na dos adolescentes.
Muita coisa mudou. A família foi sofrendo perdas e registando ganhos. Mudámos de casa duas vezes. O Vasco trocou de escolas. Foi evoluindo. Rapidamente se autonomizou em certos aspectos da vida.
Hoje, se algo não mudou é o amor. Em forma crescente. A ternura, não dissimulada. Espontânea.
É um rapagão que tomam por mais velho, porque cresceu em excesso de velocidade. Reservado, mas comunicativo, nos tempos que escolhe. Com um humor certeiro em ocasiões específicas.
O restante, são coisas que ficam entre nós. Que o aniversariante não gosta da exposição e eu não sou de dizer nas redes sociais os sentimentos que lhe demonstro e digo diariamente.

Hoje, o Vasco está de parabéns e eu sinto-me de parabéns. Isto resume tudo.

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