21 setembro 2017

Quando alguém que amamos tem Alzheimer, a esperança é a primeira a morrer



(o texto de hoje é quase uma repetição do que já publiquei, 
porque ainda dói demais voltar a este tema)

No princípio, era a negação. A minha mãe estranhava os comportamentos, criticava-o por não ir ao médico, já que ouvia tão mal... Quando a resposta tornou inequívoco que não se tratava de falta de audição, alertei-a: ele não estava protelar. Porque respondia "mas nós temos máquina?" quando lhe dizia que a louça que procurava ainda devia estar por retirar da máquina. Ou quando a "vê ali pela janela da marquise" ele ripostava "onde é a marquise?". Ouvia. Mas já não sabia processar a informação.
Não se pense, como há tendência, que é uma questão de falta de memória progressiva. É muito, muito mais que isso.
Por acaso, eu sabia o que era. E dava-se a coincidência de ter acabado de me estrear na indústria farmacêutica.
Quem não o conhecesse, não notaria nada. Só nós, conscientes de que ele já não completava as palavras cruzadas (que habitualmente só punha de lado após resolver mesmo as que requeriam o preenchimento das quadrículas pretas) nem lia o jornal, nos apercebemos.
Nesta primeira fase, o empobrecimento do léxico era também um sinal. Novamente, apenas para nós. Para os outros, que passavam menos tempo com ele, não era visível. Os cachimbos permaneciam intocados. Aos cigarros, ainda proporcionava passeios, já não sabendo o uso que havia de dar-lhes.
Tendo dedicado a sua vida aos transportes marítimos, era conhecedor dos nomes de todos os portos do mundo. Enquanto eu trabalhava e concluía a licenciatura em Relações Internacionais, cheguei a dedicar-me ao estudo das matérias teóricas, contando com o resumo diário que ele me fazia acerca do que andamento do planeta.
Um ano depois, tinha ele apenas 59, desaba sobre nós o rótulo que nos recusávamos a pronunciar: Alzheimer.
Não lho comunicámos, pois de nada valia. Julgo que, nos momentos de lucidez que então ainda tinha, terá desconfiado. Chegou a ter conversas acerca de como a morte, se viesse entretanto, o não perturbaria, porque - dizia - já vivera bastante.
Eu levara-o ao médico especialista. O meu pai, contrariado e receoso (lembrava-se da situação de um vizinho e temia que lhe fizessem "um buraco na cabeça"), apenas anuiu porque o convenci que ia para não me deixar mal vista, já que se tratava de uma consulta difícil de obter. 
A partir daí, foi a teatralização das emoções. Dar um tom de normalidade quando tudo ruía.
Era aterrorizador imaginar o futuro. Alzheimer é, desde logo, a depressão de uma família. A dedicação total, que nos envelhece precocemente. É a catástrofe económica. O luto antes da morte. Para o doente, é a cessação da vida enquanto ainda existe. 
O doente era O MEU PAI!
Tudo arrasado: os planos de viajar, ler a restante biblioteca. O livro cujo título idealizara muitos anos antes.
A partir daí, lamentei cada minuto fora da sua companhia.
E temi o que estaria para vir: o dia em que ele perderia a noção do certo e do errado, do seguro e do perigoso. O dia em que deixaria de controlar os esfíncteres. O dia em que não saberia mais orientar-se na rua, ou mesmo em casa. O dia em que não reconheceria mais a mulher. Ou a filha. O momento em que o equilíbrio lhe faltaria, o outro em que as pernas deixariam de lhe suportar o peso. O tempo que passaria de internamento em internamento, alternando entre infecções respiratórias e infecções urinárias. Ou simplesmente para ser hidratado e nutrido. Porque a doença compromete, também, a capacidade de deglutir. Como todas as restantes.
E todos esses dias, todos esses momentos, vieram.
E todas essas etapas nos faziam sentir mais roubadas, mais mergulhadas numa dor inqualificável...
Vencemos muitas fases, atrasando-as. Levando-o a passear, tentando fazê-lo rir, alimentando-o de acordo com as necessidades e o seu gosto, hidratando-lhe a pele e fazendo-o exercitar músculos e articulações enquanto estava acamado. Chegámos a tirá-lo da situação de acamado, fazendo com que voltasse a andar. E por muito mais tempo!
A minha mãe, lutadora, dava frequentemente o seu testemunho na TV, instada pela Associação Alzheimer Portugal, em dias como este, ou em peditórios.
As hospitalizações eram um retrocesso: não há pessoal hospitalar para se ocupar destes doentes. De modo que limitam-nos ao uso de fralda. Isto doía-nos profundamente, pois ainda conseguíamos levá-lo à casa de banho e sabíamos o quão rapidamente desaprenderia. Regressava com escaras. Pouco comeria se não fizéssemos por isso, estando presentes à hora das refeições.
O dia-a-dia - em casa durante a maioria dos anos de evolução da saga - era de desorientação, visões, agressividade, sapatos guardados em gavetas, dedos enfiados em tomadas ou mergulhados em tachos ao lume. Acções logo contrariadas por quem se apercebia.
Porque ninguém consegue olhar por uma pessoa demente 24 horas por dia, teve de se recorrer a ajuda exterior. A peso de ouro, evidentemente.
A família e os amigos escassearam, desculpando-se que queriam lembrar-se dele como fora.
Nós íamos vê-lo diariamente, por vezes combinando uma alternância entre a minha ida e a da minha mãe.
De ambas, recebeu todo o suporte e amor. Médicos elogiaram a forma como conseguimos, em diversas fases, ludibriar a doença.
Vi-o definhar, perder as capacidades de reconhecer e de comunicar. Pareceu entender quando, pela segunda vez, lhe disse estar grávida do meu filho, muitos dias após a primeira tentativa de lho comunicar,  num momento em que ele não entendeu. A nossa comunicação rapidamente dispensou as palavras, passando a ser o toque, o carinho, o tom de voz. Como se de um bebé se tratasse. Contudo, continuava a monologar com ele, pensando: nunca se sabe... 
Ainda dedicou uns carinhos ao neto.
Falhou a contemporaneidade com a neta, nascida poucas semanas após a sua morte. De qualquer forma, não teriam dado pela existência um do outro, cada um na sua ignorância.







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