28 janeiro 2015


Mais um.
Um passo, uma recordação, uma cicatriz, um espírito.
São alguns, os que me acompanham. Sinto-os próximos, tão junto de mim que é como se me tocassem.
São os que marcam a nossa vida. Contemporâneos ou anteriores, o sentimento não exige distinção. Ficam. São referências. Intrometem-se nas conversas, nos sonhos, mexem cordelinhos, esperam-nos.
Estes são os momentos de consciencialização das notícias que não digerimos imediatamente.
Preparam-nos para a adaptação à passagem a outro plano de alguém pertencente às nossas vidas.
Originam reencontros, apaziguam espíritos, libertam histórias antigas.
Recordam a importância do convívio.
Quem parte, se é recordado, não deixou pela vida sem deixar marca.

Não a esqueceremos.

21 janeiro 2015


Sentavam-se no murete que rodeava o canteiro da estação.
Esperavam o comboio. Sabiam esperar. Eram tempos com tempo.
Aguardavam pacientemente o desenrolar dos momentos, alheios ao calor e a qualquer sinal mundano. Ou melhor: totalmente enquadrados no mais natural cenário. Como se fossem partículas de poeira, que o voo das andorinhas agitava quando se elevavam até aos beirais. Ou borboletas, flores, átomos primaveris.
Naquele assento improvisado, que era seu por costume e por gosto, falavam de nada, num tanto de gestos e tão pouco de palavras.
Não desviavam a atenção para o ruído dos carros nem para a rotina vestida de gente que, a passos enfadados, percorria a plataforma. Não se detinham no rumorejar das águas marinhas, ali onde a marginal era paralela e o mar vizinho dos carris.
Adivinhava-se-lhes uma cumplicidade mais certa que o sangue. A menina atenta aos bichos-de-conta, que gostava de sentir rolar na mão enquanto se não ouvisse o silvo metálico. O pai, participando no estudo dos movimentos circulares dos pequenos crustáceos, acompanhando a filha num ritual quase silente, de quem se conhece muito além do que se diz.
A espera nunca era longa. Os olhos seguiam os rastejantes casuais por entre os desníveis das pedrinhas e os seus planos mais lisos, onde as formigas seguiam, por vezes, um trilho diferente, bem definido.
Não havia horas, nem se ouviam altifalantes. Os restantes passageiros como que desapareciam. Só existiam pai, filha e o calor da infância.

14 janeiro 2015


Prometias-me poesia

Castelos de ameias erguidas
Contra dores escondidas
Em sorrisos soluçantes

Prometias-me poesia

Universos em expansão
Nas noites de S. João
Com artifícios troantes

Prometias-me poesia

Do auge do abandono
Aos destroços do Outono
Por truques de meliantes

Prometias-me poesia

Entre gaffes e entrelinhas
No sopro das ventoinhas
Sob olhares insinuantes

Prometias-me poesia

Rituais mais que profanos
Em ritmos norte-africanos
No retorno dos viajantes



Prometias-me poesia

E por ti me fiz ao mar
Com redes de capturar
Peixes-verso navegantes

12 janeiro 2015


Meto-me nestas coisas porque gosto.
Gosto de saber de perto o que se passa na escola e na turma de cada filho, saber quem são os pais dos colegas, estar a par dos projectos e dos défices de cada estabelecimento, conhecer ser reconhecida pelos professores e os elementos da direcção da escola.
Além de tudo isto, gosto de encontrar pessoas e debater ideias.
Mas há momentos, destes relacionados com o meio escolar, de que não gosto.
Como em certas reuniões com os encarregados de educação.
Há mães/pais de todos os estilos. Os convictos de que os filhos são anjinhos. Aqueles que projectam nos educandos os objectivos que não alcançaram. Os que, por qualquer questãozinha reclamam a presença do professor tal, porque "coitadas das crianças", os que não devem deixar os miúdos ter palavra lá em casa, aqueles que se julgam o centro do mundo e desejam que a reunião tenha como eixo a sua situação particular.
E há os que sabem comportar-se e os que não.
Ontem, questionei-me se continuarei a ser a representante dos encarregados de educação. Algo que tenho feito ao longo dos últimos cinco ou seis anos lectivos. Tive dificuldade em aceitar que cada um falasse de rompante, sem que a directora de turma fosse dando a palavra aos presentes. E foi confrangedor agir como Kruschev. Não com um sapato, mas com uma mão na mesa, afirmando que já os deixara falar; agradecia que não me interrompessem.
Parece que é preciso educar pais. A mim, basta-me (e, por vezes, parece demasiado exigente) educar os meus filhos.
Não concordo com a confusão de valores a que venho assistindo.
Felizmente, ainda vejo mães e pais de mente aberta. Que não culpam ou exigem a presença dos professores, que não tiranizam nem apaparicam os miúdos, que se questionam e são responsáveis.
Todos aprendemos uns com os outros. Nem todos o sabem.

05 janeiro 2015

Turistas na própria cidade


A primeira coisa que ambiciono fazer assim que puder é viajar. Também com os meus filhos.
Antes de mostrar-lhes outros mundos, apresento o que está mais próximo.
Anteontem fomos turistas na nossa cidade natal: Lisboa.
O carro descansou na Rua do Alecrim. Decidimos que começaríamos o périplo pela zona ribeirinha.
Descemos ao Cais do Sodré, contei-lhes algumas das memórias da Lisboa de infância, as mesmas que referi num texto de 30 de Abril neste espaço social.
A rua onde o avô trabalhava, outra onde era o emprego da avó quando grávida de mim, a padaria onde gostávamos de terminar cada ida às compras.
Os bichinhos carpinteiros do skate sossegaram quando pôde rolar junto ao rio, pela Ribeira das Naus.
"Lembras-te como se chama este rio?" - perguntei à Mafalda. "Rio de Janeiro". O Vasco completou a ideia sugerindo que voltemos quando for rio de Fevereiro.
No Terreiro do Paço vestígios festivos polvilhados pelo chão denunciavam uma passagem de ano recente.
O interesse do Vasco pela História levou-o a procurar a placa evocativa do assassinato do rei D. Carlos, enquanto a irmã pedia para entrar no restaurante do chef dum concurso televisivo.
Andámos pelas ruas da baixa, por vezes sobre rodas, até nos sentarmos a saborear um gelado. O almoço foi de casa, em jeito de pic-nic, e comido no relvado.
Contei-lhes das lojas que deixaram de existir, como os Porfírios, onde encontrávamos roupa da nossa idade, ao contrário da generalidade dos pronto-a-vestir, que nos obrigavam a passar do infantil ao sisudo.
A caminho da Sé, comentei "esta é a rua onde nasci", referi o recente museu de Santo António e encaminhei-os para a Sé. Chegámos no mesmo instante do célebre 28. Saímos noutras rodas. Só os meus filhos, para rolarem de skate no largo da Sé...
Subimos ao miradouro de Santa Luzia, o Vasco querendo ir até ao castelo, a Mafalda pedindo inúmeras vezes um passeio de tuk-tuk. Os miúdos não entendem quando dizemos que certos prazeres têm preço para turista. Uma família de teimosos. Eles a pedirem, eu a negar.
Já junto do miradouro, sugeri à Mafalda "sobe por ali; evitas esta escadaria", ao que ela logo respondeu "eu vou por onde o Vasco for, mesmo que seja mais caminhoso". 
A miúda foi "de reboque"; as pernas estavam cansadas, reclamava. Levámo-la sentada no skate, de mão dada a cada um de nós.
Regressámos à beira-rio, conversando sobre o cais das colunas, a requalificação da zona, sentindo o rumorejar da água.
Mais adiante, a rampa lisa junto à EMSA foi a cereja no topo do bolo. Rolaram com imaginação, disputando o skate. Até que a imaginação lhes deu para procurar onde alugar bicicletas.
Quando descobrimos, já estavam a fechar. Ficou a promessa de o fazermos, numa próxima ida.
Deixámos o skate repousar no carro enquanto passeámos pelo Chiado. A miúda encantada com umas dançarinas de ventre plano, o Vasco deliciado com a extensão e os arcos da Bertrand. Espontâneo, beijou-me com um "porque, mãe, tu mereces" que me sorriu rosto e memória.
Por ali andámos, recordando o incêndio, vendo chegar as luzes, as ruas aquecidas de gente e dum lanche que ficará na lembrança dos miúdos da geração do carro. Que caminharam que nem gente grande, neste dia alfacinha.

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