Não é tanto a perspectiva de te saber noutro plano, distante do meu olhar.
É o medo de te ver sofrer. A angústia…
A memória que vai, sem o meu consentimento, buscar momentos do sofrimento de outros, que amei e já não estão. De outros sofrimentos meus…
Dizem que, quando nos damos conta de que estamos de partida, nos assaltam a lembrança flashes da nossa vida.
Talvez.
Sei que não tenho sentido outra coisa. Desde há dias, ando em permanente estado de retrocesso ao nosso passado, às nossas viagens. Às nossas idas ao cinema, ver as matinés infantis. Aos banhos, que na tua casa podiam ser de imersão e eu chamava de emergência. Às gemadas de manhã. Aos passeios à quinta, acordando ainda de noite ao fim-de-semana. Aos doces que procurava dentro da tua carteira. Aos Domingos em que jogavam monopólio, vocês, os adultos. E eu, feliz por poder preparar-vos os Nescafés, muito bem misturado o pó com o açúcar e um nadinha de água…
E as osgas, na parede do teu quarto, lembras-te? Que tanto me assustavam no início e depois de me familiarizar já não… Dormíamos juntas, acordava com o cantar do galo…
E aquela história que me relataste, eu já crescida, de um dia em que, na tua casa, eu queria um livro para me entreter e me respondeste que só tinhas livros grandes, de adultos. Eu, acabada de aprender a ler, queria alguma imagem no meio das letras. E tu respondias-me “olha, só se leres o jornal…”. E eu peguei nele e li…
As lições de condução que me deste a partir dos 14 anos, a confiança que sempre tiveste em mim…
Melhor de todas: a história do rato que apanhámos e levámos para casa!
Não sei como conseguirei ver-te ir piorando. Tu, que me incutiste a audácia de enfrentar os medos. Tu, que não podes ver agora o meu olhar desaguar em ti, tremeluzente.
Prometo esforçar-me por aplicar a tua lição. Não sei dum esconderijo para as lágrimas, mas elas não correrão enquanto te olhar nos olhos e te acariciar as mãos, escurecidas pela assiduidade dos cateteres. Prometo continuar a olhar-te sorrindo, a relatar-te as etapas dos meus filhos, a demonstrar ternura e optimismo, para não beliscar a força que és.